sexta-feira, 19 de agosto de 2011

A carta de Joaquim Cruz prova que o sistema de saúde derrota até um campeão olímpico.



Em 1984, ao vencer a corrida dos 800 metros nos Jogos de Los Angeles, Joaquim Cruz tornou-se o primeiro brasileiro a conquistar a medalha de ouro olímpica numa prova de pista. Nascido em 1963 na cidade-satélite de Taguatinga, o caçula dos seis filhos de um carpinteiro chegou ao topo do pódio apesar do Brasil. No País do Futebol, praticantes de modalidades olímpicas costumam ser derrotados já na largada pela inexistência de qualquer coisa parecida com política esportiva. Joaquim Cruz conseguiu muito mais que isso. Transformou-se num colecionador de medalhas na prova que exige, em doses exatas, a rapidez do velocista e a resistência do fundista. Não deve nada ao Brasil. É credor.

O débito acaba de ser ampliado pelo sistema de saúde que Lula considera “próximo da perfeição” e Dilma Rousseff vive festejando em inaugurações de pedras fundamentais. Por viver nos Estados Unidos, Joaquim Cruz agiu como um homem civilizado: não reivindicou tratamento especial, não sacou do coldre o “sabe com quem está falando?, apenas invocou seus direitos. Descobriu como é tratada a gente comum. E descobriu por que os pais-da-pátria, quando adoecem, nunca se dirigem a um hospital público. Dirigem-se ao aeroporto.

Travado diariamente por milhões de brasileiros, o duelo entre o sistema de saúde e Joaquim Cruz, descrito na carta que ele enviou a revista veja, prova que hospitais públicos desafiam até heróis olímpicos.
O povo será sempre derrotado, até compreender que a vida é mais que evitar a morte. Então talvez aprenda a indignar-se.
Na semana passada um tio da minha namorada faleceu vitima de um cancer. Esteve internado durante 3 semanas em um hospital público de Curitiba, onde a familia tinha inclusive que levar papel higiênico, esparadrapo e roupa de cama. E o nosso ex-presidente diz que o sistema de saúde é de primeiro mundo..



Abaixo segue a carta enviada a revista.

“Meu nome é Joaquim Cruz. Sou ex-atleta olímpico e hoje atuo como treinador de atletismo. Apesar de viver nos Estados Unidos há 30 anos, jamais deixei de ter orgulho e amor pelo Brasil, sentimentos que procuro exercitar por meio do instituto que leva meu nome e trabalha para oferecer oportunidades de cidadania a crianças carentes por meio de esporte e educação.

Infelizmente, no dia 1° de agosto, passei por uma experiência que me fez reviver situações tristes de minha infância e adolescência em Taguatinga e no Plano Piloto. Deixei minha mãe, Dona Lídia, no Hospital de Base de Brasília para uma consulta médica com uma especialista em glaucoma, mal que põe em risco o restante da visão da mulher que me deu a vida, hoje com 77 anos. Por volta das 9h15, teve início o processo de administração de colírio para dilatar as pupilas antes do exame. Porém, 15 minutos depois, às 9h30, a médica disse para um paciente que esperava no corredor que se ausentaria por uma hora, pois precisava participar de uma reunião. Eu não estava no hospital nesse momento, mas minha irmã Glória acompanhava minha mãe. Qual não foi minha surpresa quando ao retornar, às 11h15, ela ainda esperava. Aguardamos por mais uma hora quando notei a formação de uma nova fila, a qual, me informaram, era formada pelos pacientes agendados para o turno da tarde, sendo que os pacientes da manhã ainda estavam lá. Às 13h, minha irmã se dirigiu ao balcão de informações uma vez mais a fim da saber da médica. Lá informaram que ela não mais retornaria e que era possível reagendar a consulta.

Devo confessar que o descaso com os pacientes, a falta de respeito do profissional da saúde para com a população me entristeceu e revoltou. Se a médica tivesse informado que não atenderia antes de iniciar o procedimento com o colírio, eu até poderia entender, afinal, apesar de morar fora, não esqueci os problemas estruturais de nosso sistema de saúde pública. Na minha infância via os irmãos irem dormir na fila na porta do hospital público para marcar um consulta dois a três meses depois. Mas não posso aceitar um profissional que inicia o trabalho e o deixa pela metade, especialmente porque estamos falando no atendimento a pessoas, e pessoas sofrendo com doenças. Isso é mau exercício da profissão, passível de severa punição (aqui faço uma pausa para explicar que não citarei o nome da respectiva médica atendendo a um pedido de minha mãe que, apesar de ter sido abandonada, teme que a mulher que deixou a ela e outras pessoas no corredor por horas, perca o emprego. E, com isso, só posso admirá-la ainda mais).

Felizmente, podemos pagar atendimento particular e minha mãe passará por cirurgia emergencial nos próximos dias, em excelentes condições profissionais. Mas e os outros brasileiros que não podem pagar por um atendimento diferenciado? A Constituição reza que todos somos iguais e temos os mesmos direitos. Na prática, sabemos que isso não acontece. E é só por isso que compartilho esse pequeno drama pessoal. Porque se nos calarmos sempre, nada nunca vai mudar. E o Brasil e os brasileiros merecem que o país mude para melhor”.

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